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Bens a inventariar…??!!!

Dois fatos marcantes vivenciados por mim, fizeram-me refletir e escrever esta crônica.
O primeiro foi quando um conhecido me falou, tempos atrás: -Toda vez que faço minha declaração de renda anual, e verifico que meu patrimônio não cresceu mais do que 10%, tenho a sensação de que foi um ano perdido. 

O segundo, merecerá um relato mais extendido.
Certa vez, à tardinha, ao atender um telefonema local, o interlocutor que passaremos a chamar, fortuitamente, de “José”, falou-me:
-Sô Gil, a mãe acabou de morrê. (não sei se posso divulgar o nome do hospital, embora ele não exista mais). 

-O Sr. pode ajudá nóis? Eu e meus irmão tamo aqui e num sabemo o que fazê. Nóis qué levá a mãe pra interrá na nossa cidade. (José era um dos filhos de uma imensa prole da falecida, que também passaremos a chamar, fortuitamente, de “Sá Dona”. 

-Nossa!!! sinto muito, e já estou indo encontrar vocês aí. Podem esperar que estou chegando. Eu ajudarei sim, no que estiver ao meu alcance.

E lá fui eu, o mais rápido possível. Quando cheguei ao Hospital, logo na entrada, divisei com outros parentes da Sá Dona, bem como, com alguns amigos da família. Conhecia a tod@s, por razões que agora não importam explicitar. O José veio ao meu encontro, muito comovido, com discretas lágrimas nos cantinhos dos olhos: -Ela já tá no necrotério. 

Fiquei impressionado com a solidariedade dos presentes. Gente humílima, muito simples. O clima era de sincera consternação. Eles falavam entre si, bem baixinho, em evidente sinal de respeito à dor da família. E eram sempre palavras de apoio e fé.
Meu Deus, até o velório de gente simples é mais honesto, sem hipocrisias politiqueiras mundanas.

É horrível ir a um velório, e constatar as “rodinhas” de fofocas e futricas próximas ao local, em pleno falatório inútil e inconsequente. Todavia, quando passa um parente d@ falecid@, @s hipócritas diminuem o tom e “piedosamente”, com voz chorosa e dolorida (bem teatral), se declaram (falsamente) sentidos com a perda. Basta @ parente se distanciar um pouquinho, e a conversa fiada de buteco, retorna com toda força e falta de respeito, àquele momento de luto e de dor. 

Gente humilde é diferente, eles são solidários. Respeitam a dor e o momento de luto. Se dizem que estão sentidos, porque estão mesmo.
Bem-aventurados os humildes, pois eles receberão a terra por herança“. Mateus 5×5. Amém…!!! 

Eu me dirigi à recepção do hospital, identifiquei-me, e pedi autorização para ir ao necrotério. O que foi permitido, sem problemas. Acompanhado de José e de mais alguns familiares, aproximei-me da fria mesa de mármore, onde estava inerte, o corpo da Sá Dona.
Lá estava um corpinho bem franzino, de uma mulher negra de cabelos brancos. Devia ter 1,5m no máximo e pesar uns 20Kg.

Suas roupas, eram as mais modestas possíveis. Mãozinhas cruzadas delicadamente sobre o peito. A expressão facial, era a mais serena que havia visto em um cadáver, em toda a minha vida. Impressionante!! Realmente, parecia ressonar, dormir, tranquilamente!! 

Lá estava Sá Dona, neta de ex escravos. Mãe de uma numerosa prole. Avó e bisavó. Matriarca de uma família pobre e muito honesta. Tod@s trabalhadores e educadíssimos. “Missão cumprida”, diria minha mãe. Chorei, discretamente, diante daquele corpinho inerte e sereno. 

Um turbilhão de pensamentos rodopiaram, freneticamente, em minha mente. Lembro-me de ter pensado: O céu tem que existir!!!
Quem foi Sá Dona? Quem conheceu Sá Dona? Quem se lembra de Sá Dona? Como viveu Sá Dona? Como morreu Sá Dona? 

O que ela fez nesta vida? Como teria vivenciado seus dias de infância, juventude, maturidade e velhice? Quais eram seus desejos? Gostava de quê? Teria realizado seus sonhos? Acreditava em quê?
O que será que ela pensava da vida e da morte? 

Creio que, se agora, pudéssemos dar uma espiadinha no céu, teríamos todas as respostas. Certamente, Sá Dona resplandece entre os anjos, arcanjos, querubins e serafins. Certamente, muitos poderosos, reis, rainhas, ricos e milionários, se pudessem, trocariam todas as suas fortunas acumuladas em bens materiais, por um simples afago de Sá Dona.
“…meu pai, tem misericórdia de mim e manda a Lázaro que molhe na água a ponta do seu dedo e me refresque a língua, porque estou atormentado nesta chama…” Lucas 16×19. 

E por falar em bens materiais, diante daquele corpo magérrimo, eu diligentemente (percebi, depois, que foi impropriamente), perguntei aos familiares: -Quais os bens que ela possuía em seu nome? É que precisaremos providenciar o inventário, ou seja, repartir o que ela deixou para os herdeiros.

E José, assustado, redarguiu: –Inventáro, quéisso??!! Bens nu nome, num entendi, não!! Herdero uquê?! 

E eu, com ares professorais, com hálito de soberbo entendido, expliquei-lhes detalhadamente sobre “bens a inventariar“, “herdeiros e herança“. Porém, agora, digo: -Misericórdia, Senhor…Perdoe-me…
Meu consolo, foi que prometi a eles, ajudar em todos os providenciamentos legais. E o fiz…Graças a Deus… 

José coçou a cabeça, olhou para mim calmamente, e disse-me:
-Brigado Sô Gil, mai num vai precisá não!!
Retruquei: -Acho que você não me entendeu. Vou explicar melhor. Que bens ela deixou para vocês? Ela tinha alguma propriedade no nome dela?

E ele, então, foi no canto da sala necrotério, pegou um saquinho plástico de supermercado, que continha algumas roupinhas usadas, ali socadas, e falou-me:

-Isso é tudo que ela dexô pra nóis, mais a ropa do corpo que vai ser enterrada com ela. Sô Gil, nóis num tem nada, mais a mãe sôbe educá nóis tudo, e nóis semos tudo gente honesta e trabaiadora. (Disso eu sou testemunha presencial). Nem o barraco que nóis mora é nosso. De nóis memo é só a ropa do corpo. Mais tá bom, porque Deus abençoa. A gente véve assim e Deus sempre abençoô nóis tudo. Tá bão, tá bão… Que Deus dê o pago por ajudar nóis…. 

Prezados leitores, nem preciso dizer-lhes que estou chorando!!!
Toda vez que me recordo desse episódio, choro de emoção. Que lição!!

Aquele corpinho negro com cabelos brancos como flocos de neve, morto, inerte sobre aquele mármore escuro e gelado. Vestido modestíssimo. Expressão facial angelical. Havia paz, muita paz… 

Uma trouxinha de roupas usadas, socadas em um saquinho plástico, era tudo que deixava como herança. Eram os bens a inventariar… 

Providenciei a liberação do corpo, remoção e o enterro.
Sá Dona foi sepultada dignamente em túmulo singelo.
Eu não vi a festa no céu que recepcionou aquela criatura abençoada, mas, certamente, a festa deve ter sido imensa. 

Aqui na Terra, uma desconhecida. Lá no céu, uma gigante luminar, uma jóia de rara beleza espiritual. A franzina neta de ex escravos, pobre, humilde, simples, se apresentava ao Pai e declarava:-Missão cumprida!!

“Mas ajuntai tesouros no céu, onde nem a traça nem a ferrugem consomem, e onde os ladrões não minam, nem roubam. Porque onde estiver o vosso tesouro, aí estará também o vosso coração”. Mat 6×20. 

Uma trouxinha de roupas usadas, socadas em um saquinho plástico comum, era tudo que deixava como herança.

Eram os bens a inventariar… 

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